terça-feira, 4 de agosto de 2009

Á memória de Evgueni Zamiatine


Olhei durante uns momentos para ela, tal como fizeram todos os outros. Ela já não era um número; era somente uma criatura humana, existia apenas enquanto substância metafísica do insulto que acabava de ser cometido contra o Estado Único. Mas um simples movimento fez-me ver que conhecia aquele corpo dúctil como um chicote; os meus olhos, os meus lábios, as minhas mãos conheciam-na, tinha disso a firme certeza.


Adiantaram-se dois guardas, procurando cortar-lhe o passo. As trajectórias deles e dela iam cruzar-se na calçada vítrea, clara, espelhada.


O meu coração engoliu em seco, estacou e sem pensar se tal acto era permitido ou proibido, absurdo ou ajuizado, avancei para o local. Senti em cima de mim dezenas de olhos, esbugalhados de medo, mas isso deu uma força ainda mais desesperada ao ser bárbaro de mãos peludas que de mim se libertou e deu em correr cada vez mais rápido.


Tinha eu dado um ou dois passos em frente quando ela se voltou... À minha frente estava um corpo trémulo, semeado de sardas, com umas sobrancelhas ruivas...


Não era... Não, não era a E-!


A alegria desesperada abandonou-me. A vontade que me deu foi gritar: “Detenham-na!” ou “Apanhem-na!”, mas o que chegou aos meus ouvidos foi o murmúrio dos meus lábios. Entretanto, senti no ombro uma mão pesada.


(Texto retirado de Evgueni Zamiatine, Nós, Lisboa, Antígona, pp. 156)



O Romance "Nós" foi escrito em 1920, tendo sido publicado pela primeira vez em 1924, numa tradução inglesa, em Nova Iorque.


Nós constitui uma das primeiras distopias do Século XX, percursora de obras como Admirável Mundo Novo (1930), de Aldous Huxley, Mil Novecentos e Oitenta e Quatro (1948), de George Orwell e Fahrenheit 451, de Ray Bradbury. Têm em comum descreverem por antecipação a engenharia social que, apoiada no controlo do pensamento e na repressão da dissidência, garante a unidade totalitária.


Manuel Portela, Introdução à 2ª ed., Lisboa, Antigona, 2004


Fotografia: Carlos Muralhas


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